Há alguns anos, no restaurante terceirizado de um órgão público, almoçava com amigos, entre eles Antônio Fregapane, vulgo Fox, que recentemente me lembrou desta história. Estávamos todos na fila do bufê, aguardando nossa vez de se servir. Logo no início, na parte das saladas, vejo uma grande travessa cheia de um monte de trigo misturado com algo não identificável. Embaixo, dizia “tabule”. Minha avó ficaria louca se visse aquilo. Adoro tabule e, por isso, tive de pular. Ao chegar no final, onde se pesa o prato, aparece a nutricionista responsável pelo restaurante e diz: “Olá, meninos. Que tal o almoço hoje?”. Então, pensei: “Já que ela perguntou, vou ser sincero”. E respondi: “Está tudo bem. Só tem um pequeno problema. O tabule não é tabule, mas trigo com ervas”. A nutricionista sorriu sem graça e se desculpou. Para quem não conhece, o tabule é uma salada fria, de origem libanesa, bastante simples, cujos ingredientes são apenas cinco: trigo para quibe, tomate, cebola, salsinha e hortelã, com uma pitada de sal e pimenta, sempre regados com azeite extravirgem e um pouco de limão. Se quiser experimentar, recomendo. Não precisa ir ao Habib’s mais próximo. Faça em casa, mas use os ingredientes corretos, por favor! Para encerrar minha narrativa: na semana seguinte, quando retornamos ao restaurante, na parte das saladas, uma surpresa. Lá estava a mesma salada de trigo com ervas, porém agora com outro nome: “salada primavera”. O problema havia sido solucionado com um simples ajuste fino, um reparo na linguagem, mais especificamente na semântica. Aposto que a nutricionista havia lido George Orwell, o maior culpado nisso tudo.
Pois não é que o governo do estado do Rio Grande do Sul teve a mesma ideia. Talvez a nutricionista esteja trabalhando num dos quadros da Secretaria de Segurança Pública ou, ainda, da Casa Civil. Soube recentemente pela imprensa que, desde o final do ano passado, o Presídio Central de Porto Alegre não se chama mais assim. É verdade. Seu nome mudou para Cadeia Pública de Porto Alegre, por força do Decreto 53.297.
Isso porque o governo decidiu renomear os estabelecimentos de acordo com os padrões previstos na Lei de Execuções Penais: penitenciária é para preso condenado (artigo 87); cadeia é para preso provisório (artigo 112). É uma pena que se esqueceram de ler o artigo 88 (que fica logo embaixo): “O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados)”.
Ao todo, 15 unidades foram renomeadas. Algumas tiveram o adjetivo “regional” substituído por “estadual”, que indica maior abrangência (confesso que não sei de onde tiraram isso; deve ter sido de alguma portaria). Mudança concreta nenhuma. Só semântica. A impressão que fica é que, se for cadeia pública, a questão da falta de vagas e das condições degradantes perde a importância. Talvez o governo acredite que os problemas tenham desaparecido junto com o presídio central.
De todo modo, é preciso reconhecer que mudar o nome do presídio foi, sem dúvida, a medida mais inteligente que o governo estadual conseguiu adotar até o momento para enfrentar a crise dos presídios. Até porque a outra foi reformar um ônibus — que encontraram abandonado em Uruguaiana — para abrigar os presos provisórios que aguardam pela triagem. É o chamado ônibus-cela, que comporta 30 presos e fica estacionado em um pavilhão, em frente à Academia da Polícia Civil.
Moral da história: já que não se consegue transformar a realidade prisional — o que implica construir novas unidades, criar mais vagas, reformar a infraestrutura existente, investir em melhorias etc. —, então se opta por renomear os estabelecimentos prisionais. O único detalhe é que, no caso, o problema a ser enfrentado está na coisa, e não no nome. Infelizmente, a mudança dos nomes não é capaz de, como num passe de mágica, alterar o estado das coisas.
Isso porque, como se sabe, os nomes não contêm a essência das coisas, tal qual sustentava o realismo característico da metafísica clássica. Desde o século XIV, com o nominalismo, abandonamos os universais aristotélicos. Para Guilherme de Ockham, só há particulares. Os nomes são convenções, meros flatus vocis. As coisas chamadas pelo mesmo nome não têm nada em comum além de sua nomeação. Aliás, o nominalismo — e Hobbes é um de seus principais expoentes — nos conduziu ao positivismo (jurídico). E isso foi decisivo para o desenvolvimento do Direito moderno.
Como já referido em diversas oportunidades por Lenio Streck, toda essa discussão aparece em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, e também em Romeu e Julieta, de Shakespeare: "Nor arm, nor face, nor any other part/ Belonging to a man. O! be some other name:/ What’s in a name? that which we call a rose/ By any other name would smell as sweet". Se dermos à rosa outro nome, ela não perde seu perfume.
Ora, isso não significa que as palavras sejam irrelevantes para o Direito e para a ciência jurídica. Ao contrário, uma das principais críticas contemporâneas reside, precisamente, nos limites à atribuição dos sentidos. No paradigma da intersubjetividade, a guinada promovida pela hermenêutica filosófica supera não apenas a dicotomia realismo/nominalismo, mas também a dicotomia objetivismo/realismo, na medida em que a linguagem passa a ser assimilada como condição de possibilidade. Mas nem precisamos ir tão longe. Antes disso, os avanços da semiótica são suficientes para a análise do problema. Sem dúvida, a semântica é uma dimensão importantíssima do discurso jurídico, entendido enquanto prática social. No entanto, a ela devemos agregar a pragmática, que é o campo onde ocorrem os jogos de linguagem, com destaque para a retórica. Assim, fica fácil compreender que, mesmo chamando o velho presídio de cadeia, suas condições permanecerão as mesmas para os cinco mil presos que lá se encontram.